A grande maioria das pessoas, cristãs ou não, já se deparou em determinado local, com uma cruz ou ainda, com a imagem do Cristo Crucificado. Para uns é idolatria, para outros artefatos de decoração, para alguns é repúdio e para outros ainda, é símbolo de devoção ou de salvação, pois quando olha a Cruz e/ou Crucificado, lembra-se da compaixão de Deus derramada pela humanidade pecadora. Pois bem, a cruz é um símbolo perceptível que nos direciona ao imperceptível. A palavra “símbolo” deriva do verbo grego symbalein, que significa “justapor”: unir e dar sentido (cf. FRANÇA, 2010, p. 38). O símbolo é um mecanismo no qual o homem busca suprir a sua sede de perguntas existenciais, por isso reconcilia e dá sentido, apresenta a identidade de algo ou de alguém, seja pela sua horizontalidade ou pela sua verticalidade.
“[...] Desde que Jesus Cristo morreu suspenso a um madeiro, abraçando em seu imenso amor toda a humanidade, as cruzes de todos os tempos e lugares foram iluminadas” (BECKHÄUSER, 2000, p. 30). A cruz tornou-se para os cristãos, símbolo que coaduna morte e vida, dor e alegria, pois, em Jesus, ganha significado de força e vitória, que nos atrai a Ele. Conforme as palavras pragmáticas de Paulo, acerca da cruz, compreendemos como expressão corporal da Fé em Cristo crucificado, sendo a cruz, um símbolo fundamental que norteia as nossas orações, como assegura Ratzinger (2010), hoje, papa Bento XVI, interpretando Romano Guardini (1920), na sua obra sobre o espírito da liturgia. Seu pensamento teológico acerca da simbologia da cruz traçada em nosso corpo diz mais que um gesto litúrgico, “[...] é um testemunho da fé: acredito naquele que por mim sofreu e por mim ressuscitou; naquele que transformou o sinal da vergonha num sinal de esperança e de amor de Deus que nos é presente” (RATZINGER, 2010, p.131).
O símbolo da cruz, como percebemos, não foi uma criação dos cristãos, já existia antes mesmo do povo judeu, em outras religiões com significados variados. Podemos destacar, dentre estas, a cruz alçada, símbolo de vida para o Antigo Egito; a cruz de roda, representação do disco solar, hoje encontrada na Ásia e na Europa, onde muitas cidades eram construídas sob este padrão de cruz, como Roma, por exemplo; a cruz de martelo, conhecida como a arma do deus Thor, no norte germânico; a cruz gamada (suástica), sinal de felicidade e boa sorte para os indianos; e, também a cruz de Santo André (formato de X, do grego xi), difundida entre os índios da América Latina. Como percebemos, a cruz, além de representar sofrimento e morte, é também símbolo cósmico de bênção e expressa a vida e a felicidade (GRÜN, 2009, p. 11).
O teólogo Ratzinger, também compartilha, destas intuições de Grün, principalmente quando afirma que, aproximadamente no ano de 1873, no Getsêmani, foram encontradas algumas inscrições tumulares gregas e hebraicas acompanhadas do sinal da cruz, nos tempos da Cristandade. Porém, a cruz já aparecia nos túmulos judaicos de séculos anteriores a Cristo, levando os escavadores a crerem que já havia uma prefiguração da cruz como símbolo de bênção. Para bem argumentar, os autores, tanto Ratzinger como Grün, destacam o evento relatado pelo profeta Ezequiel: “... e Iahweh (Senhor) lhe disse: Percorre a cidade, a saber, Jerusalém, e assinala com um sinal (T – tau – da Vulgata) a testa dos homens que gemem e choram por causa de todas as abominações que se fazem no meio dela” (9,4). Não poderíamos esquecer que na história da Igreja, esta passagem de Ezequiel vai servir de inspiração a São Francisco de Assis (1182-1226), que assume o “Tau”[1] como símbolo de adesão ao poder salvífico de Jesus e como sinal de bênção e seguimento ao Cristo que sofre, também nos menos favorecidos.
Considerada a mais desgraçada de todas as mortes, a crucificação já existia, desde o período persa, conforme os escritos de Heródoto (430 a.C.), do filósofo Sêneca (65 a.C.) e alguns relatos de Flávio Josefo. Os romanos adotaram este tipo de morte como castigo aos revoltosos do império. Com a morte de Jesus, a cruz ganha outro significado, embora já existisse e era símbolo de morte e de vida, condenação e salvação. Os cristãos primitivos, portanto, assumiram-na como sinal de salvação e bênção, pois sinal da cruz, que os cristãos desenham sobre suas testas, é um selo escatológico, um sinal de salvamento quando o mundo chega a seu fim, e um sinal de posse, propriedade, proteção e consagração. Quem se benze com a cruz pertence inteiramente a Cristo, consagra-se a ele e experimenta a partir dele proteção em todas as aflições deste tempo.
Portanto, o discurso de Paulo, por um lado, rompe com a lógica dos homens, incapaz de conceber um Deus que se fez homem e morreu; por outro lado, apresenta a sabedoria de Deus na contrariedade da própria existência humana pela imagem paradoxal da cruz. A cruz coaduna morte e vida, Deus e homem, terra e céu, matéria e espírito, pecado e salvação. Pela Cruz se vê igualmente que, na questão da salvação, o homem, na verdade, é pecador, não pode ajudar a si mesmo, não supera, com o seu agir, a infinita distância entre ele e Deus, e que, por isso, é membro de um mundo perdido e caótico, que, na melhor das hipóteses, espera a ressurreição dos mortos, pois só o Criador pode salvar a sua criatura, e não ela mesma.
A cruz é contrária a todo pensamento judeu sobre a salvação, pois ela é símbolo de derrota, lugar maldito para crucificar ladrões, como nos afirma o livro de Deuteronômio, ressaltado na Carta aos Gálatas: “Maldito todo aquele que é suspenso ao madeiro” (Gl 3,13; cf. Dt 21,23). Os que eram condenados à morte de cruz eram levados a um lugar afastado da cidade e crucificados, todos eram considerados sem Deus, pois estes já experimentavam a amargura da condenação, uma vez que, romperam a aliança com Deus, por isso, eram excluídos por causa da impureza de seus atos. Normalmente, os condenados eram considerados pelas lideranças, como revoltosos ou pretendentes a messias, como ocorrera com Jesus de Nazaré.
O discurso paradoxal de Paulo confronta-se diretamente com a cultura semítica e com a sabedoria grega, pois, neles existe, uma busca descomedida de se apegar em seguranças tipicamente humanas para justificar pela razão, a crença da mensagem cristã. Sendo assim, a Cruz de Cristo apresenta-se como resposta a toda inquietação de fé e razão e a cruz torna-se escândalo e loucura, mas é sofia de Deus, sinal de salvação. Paulo não despreza o pensamento cristão primitivo das primeiras comunidades, contudo elabora melhor seu entendimento e é mais profundo no uso das expressões relacionadas ao valor da morte de Jesus, por isso, prega um “Cristo Crucificado” (cf. 1Cor 1,23).
O contexto que cerca a comunidade de Corinto compreende seus aspectos geográficos e ideológicos, pois foi uma cidade devastada pelos romanos em 146 a.C., mas fora restaurada um século depois por César, tornando-se uma cidade de porto comercial, por isso, lugar de transição e forte cultura helênica, especialmente por comportar em seu território o santuário de Afrodite. Paulo anunciou o evangelho em Corinto durante um ano e meio (cf. At 18,11) de onde nasceu uma virtuosa comunidade cristã, em sua maioria vinda do paganismo. Apesar disso, não ficou menos visto, com a ausência de Paulo, a vitalidade, desta comunidade, e a sua abertura ao vento impetuoso do Espírito que a tornou uma comunidade carismática: “com queda para experiências ousadas, não imune a graves desvios, e aturdida por perspectivas perigosíssimas para a genuidade da adesão da fé” (BARBAGLIO, 1989, p. 138). Por isso, a comunidade vivia muitas divisões internas, inclusive na supervalorização de alguns pregadores, dentre eles, Paulo, Apolo e Pedro (cf. 1Cor 1, 11-16) e ainda, alimentados pela procura da sabedoria, influenciados pelos gregos, tenderam a interpretar a mensagem cristã numa sofia plenamente humana.
Paulo, ciente, destes acontecimentos e dos possíveis desvios, escreve como um apóstolo da fé (cf. 1Cor 1,1s.), a fim de desmistificar a sabedoria procurada pelos seus interlocutores, conforme comentário de Barbaglio (1989, p. 40) ao se referir aos cristãos da comunidade de Corinto:
São cristãos dominados por uma lógica própria do homem histórico, que se crê auto-suficiente e cultiva sonhos infantis de onipotência, inclusive no âmbito de seu destino último da vida. Como os judeus colocavam sua confiança de salvação na prática autônoma das obras prescritas pela lei divina do Sinai, perseguindo um ideal de autocratas e observantes, assim os Coríntios confiavam nos recursos do pensamento para conseguir autarquicamente sua realização suprema.
Notamos com isso que o discurso exortativo, pertinente e necessário, de Paulo foi de extrema importância para a comunidade, pois poderia camuflar o sentido real do sofrimento e do valor salvífico da morte de Cristo na cruz. A não explicitação da pregação do Cristo Crucificado levaria a uma concepção de um deus mágico, distante do homem, contrariando, segundo Ribeiro, a sua “primeira quenose”[2]. Para Paulo a sabedoria de Deus rompe com todos os conceitos humanos e (2004) nos faz perceber que a dinâmica do sofrimento e da cruz de Cristo expressa a finalidade de revelar o amor absoluto de Deus, pois em nome deste amor, Jesus “de rico se fez pobre por nós, a fim de nos enriquecer com sua pobreza” (cf. Gl 2,19; 4,5; 3,13s; 2Cor 5,21; Rm 8,3s;7,4). Este paradoxo ratifica a eficácia do sentido paradoxal do sofrimento e da cruz de Cristo, conforme comentário de Clarita Ribeiro em seu livro, Misteryum Paschale, ao interpretar o teólogo, Balthasar (2004, p. 70):
[...]. Trata-se de um mistério que nos excede, que só compreendemos na fé e que deve ser um mistério de amor. Isso implica que todo o sofrimento de Jesus, até seu caráter excessivo é, em última instância, expressão de sua alegria trinitária eterna, pois Deus é amor, e a paixão é, na economia, seu ato supremo.
No alto da cruz revela-se o mais sublime amor: Jesus doa a sua vida e manifesta a sua sabedoria, tornando a Cruz, base da fé e da vida cristã. Sua sabedoria vai contra toda “sabedoria do mundo” e da influência greco-romana de Corinto, propondo assim, “o escândalo da Cruz de Cristo como poder e sofia de Deus”. Na cruz morre o homem Deus, mas ressuscita toda a humanidade, por isso, “a descida de um só ao abismo é a ascensão de todos para fora desse abismo” (idem. p. 64), por isso, o significado da Cruz de Cristo ultrapassa as expectativas humanas. Jesus ao assumir a nossa humanidade, assume, por amor, o nosso pecado (cf. 2Cor 5,21), mesmo não sendo pecador. Ao assumir o nosso pecado, torna-se pecado (do hebraico, hattat’t, pecado ou vítima pelo pecado, cf. Lv 4,1-5, 13) e maldito (cf. Gl 3,13), por isso é crucificado e seu ato revela uma grande solidariedade de Deus a todo gênero humano pecador onde somos alcançados pela sua justiça e libertos do pecado.
Sob o olhar do sofrimento redentor de Cristo na Cruz enfatizado pelo apóstolo compreendemos a polêmica de sua pregação no mundo tão fechado à sensibilidade humana, como outrora se comportavam os judeus, os gregos e romanos. Contudo, não é muito diferente dos nossos dias, onde muitos ainda fogem e negam a imagem da cruz e o sofrimento, seu e dos outros. Por isso, conforme o capítulo que sucederá a este, faremos uma crítica à tentativa de esquecimento do sofrimento, manifestado na atual cultura moderna hedonista e que penetra algumas expressões religiosas neopentecostais.
Para Paulo, a morte de Jesus é a expressão mais completa de sua vida e estabelece para nós o modelo de uma vida de amor e obediência. Jesus foi obediente até a morte, morte de Cruz e Nele, somos salvos pela fé e adesão. Nele somos novamente criados e identificados como Povo de Deus à ponto de afirmar como o Apóstolo, que com Cristo somos crucificados e que, vivos, não somos mais nós, mas sim, Cristo que vive em nós (cf. Gl 2, 19b-20a). Por conseguinte, a fé vem pela pregação e esta nos coloca entre os fatos salvíficos, por isso, a Teologia da Cruz e a Teologia da Palavra coadunam, no seu conteúdo e sentido: o Cristo Senhor. Sendo assim, a morte de Cristo assinala um novo tempo na qual os gentios são adotados, como filhos de Abraão, conforme citação abaixo do Dicionário de Paulo e suas Cartas (2008, p. 862):
A morte de Cristo ocupa claramente o centro da Teologia Paulina. Paulo recorre a uma abundância de imagens para explicar o que ela significa, para revelar os recursos abundantes que ele tem disponíveis nas Escrituras de Israel e na fé comum da Igreja Primitiva e para relacionar mais diretamente a Mensagem da Cruz com os leitores em seus ambientes e suas circunstâncias diferentes. A Cruz de Cristo está na interseção dos principais caminhos de sua teologia e de seu entendimento de como os fiéis devem viver antes da volta de Cristo. Para Paulo, os fiéis manifestam a obediência a Cristo aqui e agora proclamando a sua morte até que ele venha.
Sendo assim, a mensagem da cruz é loucura. É loucura e escândalo pelo seu saber escondido que revela a glória e exaltação de Cristo, como afirmaram os antigos da Patrística: “E para saberes que a cruz é também a exaltação de Cristo, escuta o que Ele próprio diz: Quando Eu for exaltado, então atrairei todos a Mim. Como vês, a cruz é a glória e a exaltação de Cristo”[3]. A Igreja, contudo, acolheu, em sua liturgia, o discurso paulino e assumiu a cruz como símbolo: de salvação, porque nela Cristo concretiza seu ato supremo de amor pela humanidade; e como método missionário, que ecoa nas palavras do Evangelho que diz “que é preciso renunciar a si mesmo, pegar a sua cruz e segui-lo” (cf. Lc 9,23). A liturgia expressa esta adesão apostólica nas suas festas e sinais sagrados, levando os crentes a configurar os seus sofrimentos com os de Cristo.
Pe. Paulo Nunes Santos
NUNES, Paulo. O PARADOXO DO SOFRIMENTO E DA CRUZ NO DISCIPULADO CRISTÃO. Salvador: Vento Leste, 2012, Capítulo II, 2.1.
[1] “Tau” – o Tau franciscano revela a espiritualidade da esperança, da conversão e do despojamento, numa busca de adesão ao Cristo e a sua salvação através dos votos de pobreza, castidade e obediência. Assim diz a bênção do Tau: “O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor te mostre a sua força e se compadeça de ti. O Senhor volva o seu rosto para ti e te dê a paz. O Senhor te abençoe!” (Retirado do livro de Ana Jussara Lima Dias, Comunidade Católica Shalom: Orando com a Bíblia e São Francisco de Assis).
[2] A expressão “primeira quenose” refere-se a condição de Deus sendo Deus, esvaziar-se de sua divindade para assumir a condição humana (cf. Fl 2,6-11). Tanto a expressão “primeira quenose”, como “segunda quenose” (morte soteriológica de Jesus) é utilizada por Hans Urs von Balthasar, na interpretação de Clarita Sampaio Mesquita Ribeiro, no seu livro Mysterium Paschale: A quenose de Deus segundo Hans Urs von Balthasar de 2004.
[3] Texto extraído dos Sermões de Santo André de Creta, bispo – séc. VIII. Sermão 10, na Exaltação da Santa Cruz: p. 97, 1018-1019.1023.
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